Feliz (quase) 2024! Sempre deixava para escrever sobre o melhor do meu ano depois que ele terminasse, como meus outros textos de 2021 e 2022, lançados em janeiro do ano seguinte. Fazia isso porque considerava que os últimos dias do ano poderiam me reservar alguma maravilha.
Este ano resolvi adiantar, não porque mudei minha visão, mas porque a correria deste fim de ano está tanta que é muito improvável que eu sequer consuma algo novo, quanto mais algo que tire a coroa dos meus escolhidos deste ano.
Por fim, fiquei muito satisfeito com o formato que fiz no ano passado no qual escolho apenas uma obra, a mais importante do meu ano, para recomendar. Novamente, às vezes a obra escolhida não será a melhor que consumi, mas será a mais marcante. Dito isso, vamos aos escolhidos:
O Livro
“A Tirania do Mérito - O que aconteceu com o bem comum?”, de Michael Sandel
Por pouco na frente de “Eu, Robô” de Isaac Asimov, posso dizer com tranquilidade que este livro mudou minha vida.
Fruto de suas reflexões sobre a ascensão de Trump e a pandemia de covid-19, Sandel traz uma narrativa sobre a história moral do culto ao mérito e suas consequências sociais e éticas nos Estados Unidos. No entanto, nós brasileiros percebemos o paralelo claro que temos com a nossa sociedade.
Ele explica como a ética meritocrática separa a sociedade entre ganhadores e perdedores; os sentimentos negativos que essa separação gera em ambos os grupos; como pessoas poderosas usam de retórica meritocrática para justificar a manutenção de seus privilégios; o mérito enquanto forma de preconceito, desvalorizando pessoas e o trabalho; os problemas de utilizar o mérito como forma de triagem e vários outros problemas de uma sociedade obcecada por meritocracia. E tudo isso de uma forma muito simples, prática e didática.
Uma das conclusões que mais gostei foi logo na introdução, quando Sandel descreve como o discurso político ao redor desse tema é superficial e enviesado, afinal tanto a esquerda quanto a direita partem do pressuposto de que o sistema meritocrático é desejável e nada é questionado.
Usei passagens deste livro para reflexão quando escrevi sobre mérito e sobre arrogância dentro do basquete, recomendo a leitura se você quiser saber o tipo de conteúdo que encontrará de maneira muito mais profunda e completa lá. Livro absolutamente necessário para os dias de hoje.
O Filme
“12 Angry Men” (1957), dirigido por Sidney Lumet
No Brasil tendo o título de “12 Homens e Uma Sentença”, sempre quis ver este filme porque me falaram que ele tinha o melhor roteiro de todos os tempos e achei isso muito curioso, afinal ele é adaptado de uma peça.
Finalmente surgiu a, bem, oportunidade de assisti-lo em 2023. E posso afirmar que foi com tranquilidade o que mais me impactou no ano e briga fortemente pela posição de melhor filme que já assisti.
“12 Angry Men” gira ao redor de um júri popular formado por doze homens que precisam decidir sobre um caso de homicídio. Se culpado, o réu será condenado à morte. A princípio tudo parece muito claro e óbvio, mas à medida que eles vão conversando sobre o caso, as coisas vão ficando complexas e tomar uma decisão torna-se cada vez mais difícil.
Eu gostei muito de como o roteirista utiliza limites como instrumento de desenvolvimento, habilidade tão simples, porém rara hoje no cinema blockbuster. Para exemplificar, os homens possuem certas obrigações legais: eles só podem sair da sala depois de ter um veredito; se você tiver qualquer dúvida sobre a culpa, deve votar pela inocência; ao mesmo tempo, este veredito tem de ser unânime. A quantidade de tensão por cada frase, cada opinião mudada, cada argumento utilizado cresce demais com essas exigências e ajuda a avançar a história.
Outra escolha brilhante da direção é ter o tempo diegético sincronizado ao tempo real, isto é, o filme tem cerca de uma hora e meia de duração e dentro do mundo do filme também se passa uma hora e meia, como se estivéssemos observando ao vivo. A demora para decidir, o tempo investido em discussões detalhistas, o desgaste físico e emocional dos personagens, toda a evolução do caso tem um peso muito palpável porque estamos literalmente acompanhando tudo igual aos personagens.
Enfim, o filme completará 70 anos de idade daqui a pouco, mas é atemporal. Poderia escrever um texto inteiro sobre ele, assim como fiz com Retratos Fantasmas (que teria levado o posto de filme do ano não fosse este), Barbie e Oppenheimer, mas aqui temos que ir adiante para o próximo destaque.
A Série
“Barry” (2018-2023), criada por Bill Hader e Alec Berg
Como disse em outras retrospectivas, quase não consumo séries, especialmente hoje quando a imensa maioria é de uma qualidade terrível. Então ao mesmo tempo que peço para você levar minha opinião sobre séries com um asterisco, também imploro para que você assista Barry.
Centrada em Los Angeles, Barry é sobre um assassino de aluguel (chamado Barry) que, ao receber uma missão, acaba acidentalmente indo parar em um curso de atuação em um teatro antigo, o que desencadeia sua paixão profunda pela carreira de ator. Com o passar do tempo, ficará cada vez mais difícil separar suas duas vidas e consequências sérias começam a aparecer para ele e todos os envolvidos.
Parece que estou descrevendo um drama de estudo de personagem (e tem muito disso também), mas a série é uma comédia das mais genuínas possíveis. Fiquei impressionado com o talento de todos os atores nela (a maioria desconhecidos para mim); com o roteiro, que é muito simples (no melhor dos sentidos), mas traz referências e simbolismos desde a Marvel até Shakespeare; com a direção, cirúrgica nos momentos dramáticos e refrescante nos inúmeros momentos de ação; sem falar na direção de arte que traz verossimilhança, mas ao mesmo tempo fantasia criminal de maneiras inusitadas e geniais.
Consigo me lembrar de vários momentos marcantes ao longo de seus 32 episódios, momentos que nem filmes com dez vezes seu orçamento conseguem fazer igual. Chorei de rir, mas também chorei emocionado. É entretenimento de qualidade junto com uma mensagem sincera de seu criador para o mundo do cinema.
E por último…
O Jogo
“Hades” (2020), produzido e distribuído pela Supergiant Games
Desde que me formei do ensino médio, poucas vezes um jogo me fisgou chegando ao ponto do vício, por diversos motivos. No entanto, eu devorei Hades.
O jogo conta a história de Zagreus, filho do deus que dá nome à obra e príncipe do submundo, tentando escapar de sua mansão no mundo dos mortos para conhecer o dos vivos. Na jornada, ele irá ter revelações profundas sobre sua família, quem ele é e seu papel no universo.
Seus criadores fizeram algo genial que eu nunca tinha visto até então: eles transformaram uma convenção de gênero da jogabilidade em uma ferramenta narrativa. Em outras palavras, eles viram um aspecto essencial de jogos rogue-like (morrer e voltar várias vezes para enfrentar os mesmos desafios com bônus diferentes) e usaram isso para contar a história, narrando como Zagreus sempre voltava à mansão depois da morte e encontrava novas pessoas por lá, novos diálogos, comentários sobre o que achou, novos objetivos que traziam sentido para as tentativas frustradas de chegar à superfície, ou mesmo eventos que alteram aspectos do caminho. É como se fosse a versão videogame de “No Limite do Amanhã”, filme excelente de 2014 com Tom Cruise.
Dá pra sentir o carinho e cuidado que foi feito em cada detalhe, desde a trilha sonora belíssima (spoiler: até fazem jus ao desempenho do lendário Orfeu), até a jogabilidade fácil de aprender e difícil de dominar, a direção de arte, o conhecimento e respeito à mitologia grega, o enredo, até mesmo as suas armas e o “dinheiro” que usa para melhorar, tudo tem um só objetivo: reforçar o tema, que é a herança que carregamos da nossa família. Sensacional.
2024
É interessante ter uma janela para o passado, saber seus pensamentos exatos de uma determinada época. Há um ano, disse que esperava que 2023 fosse mais rico que o anterior. E foi! Mas de muitas formas que não esperava.
Continuei consumindo muitos livros e filmes, mas o tipo de riqueza que mais tive foi de amadurecimento e crescimento. Valorizei mais meu cotidiano e as pessoas da minha vida, agradeci mais pelo que tenho, ajudei mais os outros. Retornei ao catolicismo, algo fundamental para esse processo. Me tornei mais responsável e mais focado, até mesmo nos estudos, que eu sempre desandava.
Sobre o ano que vem, creio que será um ano de mudanças. Provavelmente haverão muitas, dentro das mais variadas áreas da minha vida e pela primeira vez eu não faço ideia do que virá a seguir. Felizmente, este ano me preparou para não temê-las. Começo 2024 cheio de perguntas e espero que termine com várias respostas.
Feliz 2024!