Esse texto contém spoilers.
Quando anunciaram pela primeira vez que iria ter um filme da Barbie, assim como a data e o elenco, ninguém levou a sério. O mesmo aconteceu com The Super Mario Bros. Movie (2023), que em seu anúncio foi tratado como piada e as pessoas fingiam estar ansiosas de forma irônica (o resultado foi medíocre).
No entanto, acompanhando a campanha de divulgação, não sabia mais distinguir o que era expectativa genuína e o que era brincadeira. Via críticos e cinéfilos realmente entusiasmados com a ideia desse filme, o que era estranho para mim. Mas, como sempre, mantive a mente aberta para o caso de ser de fato bom. Após as primeiras críticas bastante positivas, decidi assisti-lo.
E gostei muito do filme! Me diverti bastante. A diretora, Greta Gerwig, listou trinta e três filmes que supostamente tinha usado como base para dirigir Barbie, passando por vários gêneros e eras diferentes da história de Hollywood. Eu achei que ela estivesse brincando até pelos títulos presentes ali, mas não. Dá pra ver elementos de vários clássicos do cinema americano de inúmeros estilos e gêneros, do musical à ficção científica, do suspense aos épicos românticos, reunidos às vezes em uma mesma cena ou sequência. Mas claro, com a estética chiclete por cima.
Estas inspirações e referências passam pelos mais diversos aspectos da linguagem. Greta pode pegar emprestada a direção de arte e mise-en-scène nas sequências musicais; o desenvolvimento e caracterização de personagens de épicos românticos e faroestes; fotografia e enquadramento de dramas e suspenses; até mesmo elementos conceituais de roteiro e construção de mundo, como a influência de O Show de Truman (1998) que traz a Mattel observando tudo que acontece em Barbieland, lançando brinquedos conforme os eventos vão tomando forma.
Até agora falei das homenagens que influenciam na narrativa, isto é, também ajudam a contar a história. Porém, parte delas serve para o humor. Algumas cenas são reconhecendo tramas, elementos e até impactos culturais desses “filmes inspiração”, a minha favorita envolvendo O Poderoso Chefão (1972), que traz um curto comentário surpreendentemente detalhado e preciso, me tirando uma gargalhada.
O mais curioso é que, apesar de referências como esta acima terem um propósito mais simples e direto, elas nunca são gratuitas - todas também estão lá para reforçar a temática. Ou seja, nós não temos somente uma piada sobre Poderoso Chefão, temos uma piada que usa Poderoso Chefão para reforçar as diferenças de poder e gênero que existem nas relações cotidianas do ponto de vista das mulheres.
Falando do tema, vi muitas pessoas, em sua maioria de ideologias conservadoras, afirmando que Barbie tenta enganar as pessoas vendendo comédia e ternura para entregar de brinde ideais progressistas. Eu não entendi onde está o engano. Barbie em nenhum momento se abre a interpretação. Sua mensagem está sempre no texto, isto é, o filme é completamente transparente sobre o que se propõe, não deixando nada à margem para ficar subentendido (subtexto) ou inserido dentro de outras fontes (contexto).
Particularmente, não vejo o menor problema em filmes que defendem o que seus artistas acreditam se essa defesa é feita de maneira honesta e aberta, sem distorcer fatos ou dar informações enganosas. Apesar dele deixar clara e cristalina qual visão tem da sociedade, em nenhum momento a divulga de maneira maliciosa, manipulativa ou sensacionalista. Está lá, literalmente discursada, para concordar ou discordar.
Inclusive, acho que o tema é estabelecido de maneira brilhante na sequência inicial, a única que traz várias camadas para discussões (mesmo assim, há uma narradora para deixar seu significado inequívoco). Parodiando 2001: Uma Odisseia No Espaço (1968), temos os recortes idênticos à obra-prima de Stanley Kubrick, porém com meninas quebrando bonecas de bebês após entrar em contato com a Barbie, ao invés dos primatas aprendendo uso de armas e violência após entrar em contato com o monolito.
Ao final, a criança joga a boneca para cima e com um corte abrupto o título surge, simulando a famosa elipse de milhões de anos. Porém, à medida que o filme avança, a paródia vai dando lugar à paráfrase e entendemos que na verdade aquele corte abrupto também era uma elipse temporal, simbolizando a evolução das bonecas e a manutenção das armadilhas para as mulheres.
Assim como o instrumento de violência atual do humanoide é transformado visualmente no que ele usaria no futuro (em 2001, o osso se transforma em um satélite armado de bombas atômicas mirando a Terra), em Barbie o instrumento de opressão feminina do passado (a fantasia materna) se transforma no que seria usado no futuro (consumismo e estética corporal).
Não à toa todos os personagens não possuem identidade, nem sequer nomes diferentes. A única que foge da norma é ridicularizada. É aí que Sasha ganha sua importância temática no roteiro, porque ela quem primeiro denuncia esse processo e contagia as outras. O discurso vendido pela Barbie não salvou as mulheres, mas as aprisionou em novas obsessões.
O que nos leva a Oppenheimer, que foca justamente no elemento parafraseado - a evolução da violência para a bomba atômica.
Aprofundar-se nesse tópico é obviamente complicado (os japoneses por exemplo, seguem sem data de estreia em seu país), mas achei que o filme tratou de uma forma responsável e sensível, este último sendo um adjetivo que jamais pensei que fosse usar em um filme do Christopher Nolan. Ele está interessado em acompanhar a evolução da violência, mas mais do que isso; em acompanhar o fardo que seus idealizadores precisaram carregar após essa invenção.
Constantemente o personagem-título precisa passar por situações nas quais o filme levanta dúvidas sobre seus reais motivos, quem realmente defende ou o qual seu verdadeiro plano, enquanto assistimos paralelamente ele ser interrogado sobre o que fez e deixou de fazer. Afinal, por que construiu a bomba atômica? Era realmente necessário? Ele sempre teve ressalvas sobre ela, ou mudou de ideia depois, quando lhe era mais conveniente? Suas ligações com ideias comunistas tiveram algo a ver com isso?
Similar a um dos melhores trabalhos de Nolan na escrita, Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), Oppenheimer segue uma das regras máximas do roteiro, explicada por Robert McKee em seu livro Story:
O VERDADEIRO PERSONAGEM é revelado nas escolhas que um ser humano faz sob pressão - quanto maior a pressão, maior a revelação e mais verdadeira a escolha para a natureza essencial do personagem.
Esse conceito justifica a montagem paralela com os três momentos diferentes na vida de Robert. Se o filme fosse montado em ordem cronológica, não entenderíamos o motivo de muitas das cenas e elas se tornariam tediosas, descartáveis. Ao unir com a avaliação de suas credenciais, Nolan dá a cada cena um toque de “como isso poderia ser usado contra ele? Isso prova realmente alguma coisa?”, aos poucos piorando os fatos revelados e seguindo em crescente tensão, que como vimos, revela cada vez mais sobre quem Oppenheimer é de verdade. Ele é um sujeito ambíguo, pressionado e forçado a se posicionar cada vez mais, a confrontar seus maiores pecados.
Essa abordagem não fica presa ao roteiro. Ela também se traduz na linguagem, com os também constantes planos fechados na face de Cillian Murphy, como que nos colocando para sermos seus juízes, analisarmos suas expressões, suas reações, suas intenções. Como bônus, também ressalta o talento dele e de seus contracenantes.
Além disso, Nolan também acertadamente coloca elementos surrealistas para enriquecer as emoções dos personagens e suas opiniões sobre Robert. Em um exemplo mais gritante, temos ele surgindo pelado durante o interrogatório, mostrando seu nível de exposição e julgamento, e rapidamente mudamos de ponto de vista e passamos para as emoções de sua esposa Kitty, que visualiza a traição com Jean a encarando fixamente, quase em um desafio, aguardando sua reação.
Outro exemplo mais sutil, dentro de outro aspecto da linguagem, foi um som repetitivo de batidas graves rápidas e ensurdecedoras que eclipsava certas conversas e frases, todas tangenciando ou entrando no tema da responsabilidade de Oppenheimer na morte de pessoas. Este som só irá aparecer de forma diegética no seu discurso após o uso das bombas, com o bater das botas das pessoas nas arquibancadas de madeira, ansiosamente aguardando um pronunciamento do qual Oppie se envergonha profundamente. É um prenúncio fúnebre belíssimo e surpreendentemente íntimo.
Em contraste, o uso do silêncio também é cirúrgico, sendo um dos vários motivos da sequência do teste Trinity ser perfeita. A beleza da química, representando mudança, orquestrando labaredas como em uma dança destrutiva, uma visão tão hipnotizante quanto horripilante. Nolan escolhe deixar a cena em silêncio e trazer o som atrasado não só para ser fisicamente preciso, mas para também nos lembrar que, após o deslumbramento, chegam as consequências. E vemos cada um dos presentes ser atingido individualmente pela onda de choque e o impacto sonoro.
A própria estrutura do filme segue esse padrão, trazendo um tom de curiosidade e heroísmo no início, para aos poucos ir se transformando em desconforto e culminar em culpa, arrependimento e penitência. Todos os sentimentos proporcionais em escala do evento, mas talvez grandes demais para uma pessoa aguentar. Por isso a luz branca intensa, símbolo da iluminação do conhecimento e da mudança de paradigma na Trinity, se transforma em um lembrete doloroso pelo resto do filme, ficando marcante no final de seu interrogatório.
Algumas coisas me incomodaram também. Senti falta de mais simbolismo em relação a Prometeu, associação que nunca tinha feito antes e me parece tão perfeita, tanto na natureza literal, com ambos entregando o fogo para a humanidade; quanto figurativa, com o fogo representando o conhecimento, ato que é fonte de culpa e um posterior castigo eterno. Entendo que pela proposta de uma cinebiografia isso teve que ser limitado, mas acho que traria mais riqueza ao filme.
Voltam a aparecer os maneirismos mais típicos do Nolan, como inconsistências na qualidade de montagem e diálogos, mas pelo menos em menor escala comparado a seus filmes mais recentes. Por vezes temos um personagem explicando para o outro coisas que ambos já sabem; um começa a frase em um laboratório de Princeton, o outro termina o raciocínio cavalgando no deserto de Los Alamos, ambos cheios de frases de efeito. Isso quando o problema não é a breguice direta, como na cena na qual Jean puxa o livro do qual Robert tiraria a famosa frase e o faz repetir durante o sexo. Entendo que a intenção é associar a excitação sexual com o poder da bomba atômica, mas o resultado ficou forçado e me causou vergonha alheia.
Outro ponto que me incomodou foi o elenco. Um dos motivos de existir o typecasting (e seu contrário, a escolha “contra o tipo”), é justamente aproveitar a bagagem associada com a imagem pública de cada ator, que não pode ser ignorada. Não tem como olhar para Tom Cruise hoje sem imaginar ele fazendo cenas de ação insanas, principalmente relacionadas à espionagem por Missão Impossível, e isso rende a ele mais oportunidades de interpretar outros espiões, como em Encontro Explosivo (2010).
Oppenheimer parece não entender a imagem que certos atores trazem consigo e há muitos que parecem deslocados do papel. E como a maioria tem pouco ou nada para trabalhar, só traz mais atenção às suas bagagens. Devido à sua maior participação e profundidade, Robert Downey Jr. não teve problemas em nos afastar de Tony Stark, por exemplo. Por outro lado, quem mais me distraiu foi Jack Quaid; ele me deixou extremamente confuso quando descobri que interpretava ninguém menos que Richard Feynman.
Assistir aos dois filmes em sequência ressaltou o tema de ambos, curiosamente. Mesmo falando sobre coisas bem diferentes, eles parecem tangenciar-se o suficiente para tornar a experiência enriquecedora. Um fala sobre desigualdade de gênero, bem ilustrada no segundo (até mesmo no tratamento do roteiro às personagens femininas). O outro fala sobre a evolução da violência e o peso que o conhecimento coloca nas pessoas, bem ilustrada no primeiro (contudo, tratando de outras formas de violência).
A propósito, interessante como Oppenheimer toca tão direta e nominalmente nas ideias de extrema-esquerda e a única polêmica que ele passou foi sobre a idade do elenco, em contraste com Barbie, cujas polêmicas se estenderam até ser banida do Vietnã.
Fazia tempo que não me permitia passar a tarde inteira no cinema (cerca de seis horas). Mais tempo ainda quando penso no quão bons são esses dois! Realmente um presente. Desejo que você tenha a mesma oportunidade.
Bônus
O crítico de cinema e também professor e historiador Waldemar Dalenogare produziu um vídeo comentando o livro que deu origem ao filme (Oppenheimer: O Triunfo e Tragédia do Prometeu Americano, de Kai Bird e Martin J. Sherwin) e também fazendo uma checagem de fatos sobre o que é real ou não na história contada por Nolan.
Tive boas surpresas com diálogos que jurava que eram inventados, mas foram reais e também mudanças drásticas (sempre inevitáveis para um filme coeso) nas relações pessoais de Robert, reduzindo Jean Tatlock a um mero fetiche sexual quando na realidade ela foi a principal razão dele começar a se envolver publicamente com o ativismo político.
Recomendo o vídeo (e espero poder recomendar o livro depois de ler também):
Muito bom!!!!