No momento em que escrevo essas palavras, saí da sessão de Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, há menos de uma hora. Resolvi escrever de forma mais crua e direta sobre um dos melhores filmes que vi em 2023, mas também sobre seus temas e como eles surgem em diversos aspectos da vida humana, desde a arte até a história e a filosofia.
Este é um filme sobre a evolução do Recife como cidade, as transformações que passou, os fantasmas que deixou. Uma história de pessoas e as escolhas dessas pessoas nessas transformações e nesses fantasmas, às vezes até transformações em fantasmas. E o cinema enquanto a fonte de luz na escuridão, o instrumento de registro desse processo todo.
É engraçado que, por se tratar de um documentário que usa a biografia de seu autor para explicar seu objeto de estudo, ele é tido como um “filme pessoal”; mas qual filme não é? Partiremos da frase que Kleber carinhosamente inseriu na boca de um personagem de Eisenstein (2006): filmes de ficção são os melhores documentários.
Obviamente que quando vi O Som Ao Redor (2013), Aquarius (2016), ou Bacurau (2019), percebi a influência da pessoalidade na construção de mundo, na direção de arte, no enredo… mas foi somente vendo Retratos hoje que percebi que o nível de exposição de sua intimidade, do que acredita, de onde veio, sempre foi o mesmo. E qual a função do cinema neles? Kleber está fazendo filmes sobre sua cidade? Sobre relações humanas e políticas do seu cotidiano? Ou é o filme que está registrando Kleber naquele período?
O cinema enquanto retrato histórico é uma ideia da qual também sou adepto. E acho fascinante perceber como o cinema se relaciona com diferentes pessoas em diferentes lugares, mesmo que tenham pontos de vista opostos sobre uma mesma coisa; é como se, ao juntar todo o amontoado de obras profundamente pessoais, pontos de vista inteiramente íntimos, a soma resultasse em um registro preciso e imparcial de um tempo. O todo é maior que a soma das partes.
E é bela a forma como Recife aparece nesse processo; uma cidade onde todos se recusam a usar artigos (preferindo falar “a casa de João”, ao invés do mais usual “do João”), com exceção da cidade, o Recife - como se todos fossem impessoais e distantes, menos sua soma. O oposto do que ocorre no cinema.
Pensando nisso, me peguei refletindo sobre onde estou inserido nesse grande esquema das coisas. Como, ao invés de estar escrevendo sobre temas, na verdade a arte da escrita está me registrando, me usando como um representante do meu tempo, condenado a, no futuro, também ser um fantasma.
E quais desses fantasmas merecem registro? Muitas pessoas possuem relações conflituosas com o passado, não sabendo lidar com a mudança, ou nem sequer a percebendo. Muitas pessoas negam seus fantasmas, até mesmo os que vivem ali há muito mais tempo que eles. “Pra que reparação histórica?”, chegam a dizer. “Eu nunca tive escravos”.
Agora acho que é uma boa hora para contar como as discussões temáticas do filme se relacionam com os fantasmas de uma tribo indígena famosa, localizada no outro lado do planeta.
Túmulo Vazio
Esta é a Ilha de Páscoa, lar dos Rapa Nui, uma tribo indígena milenar que reside lá até hoje. Ela é a habitação humana mais isolada do mundo, ficando a mais de três mil e quinhentos quilômetros de distância do continente americano e mais de dois mil quilômetros da habitação humana mais próxima.
Baseado em estudos antropológicos, a ilha tinha por volta de quinze mil nativos vivendo nela, além de uma rica biodiversidade repleta de espécies curiosas, simbolizadas pelas palmeiras mais altas do mundo, chegando a quinze metros de altura.
No entanto, pouco mais de um século depois, a ilha possuía por volta de três mil indivíduos e a paisagem estava como na foto: flora com predominância de gramíneas, poucas espécies de animais. Hoje é comum vermos fotos das estátuas Moai em um cenário parecido com as pampas brasileiras, contrastando com os sinais encontrados nos estudos. O que aconteceu?
Existem atualmente estudos questionando essa hipótese que vou descrever agora, assim como fatores sociais que tornam todo o processo mais complexo, mas a teoria mais aceita ainda é a de que os nativos levaram-se ao colapso ambiental após desmatarem toda a ilha.
Eles usaram tanta madeira para fazer instrumentos, armas, meios de transporte e moradias, que não perceberam para onde isso estava os levando: um declínio agudo de quase oitenta por cento de sua sociedade. Os acadêmicos chamam um evento como este de ecocídio – a destruição de toda uma comunidade por desequilíbrio ambiental.
Logicamente, surge a pergunta: se a ilha é tão pequena, como eles não perceberam que estavam desmatando toda a vegetação? Como não viram que estavam causando danos muito permanentes no local?
A resposta é que a mudança, apesar de rápida em um espaço de uma população (cem anos), não consegue ser percebida entre gerações diferentes. Se os adultos desmatam uma área, as crianças que nascerão depois não irão estranhar a ausência de mata naquela região. Elas aceitarão como normal. Quando elas crescerem, terão filhos e esse ciclo irá se repetir. No final, terá uma população acostumada a não ter árvores na ilha, sempre foi assim durante a vida delas.
Como pode você estranhar algo que não viveu? Quantas vezes você passou pelas ruas de sua cidade, olhando para os edifícios e estabelecimentos e sentiu falta do meio ambiente daquele local? O que será que tinha ali, se perdeu e você nunca irá descobrir?
É isso que Retratos Fantasmas tenta expor. O mangue antes do prédio, a lama antes do asfalto, o cinema antes da Igreja, a Joselice antes do Kleber. Os fantasmas do passado que a gente escolheu perder, e também os que escolhemos preservar.
Naturalmente, ao afirmar isso estou inferindo que devemos “preservar” e enfrentar certos fantasmas. Por que temos essa obrigação? O que nós temos a ver com o que havia antes, de que me importa o que ocorreu décadas ou séculos atrás se não fui eu quem vivi?
Um filósofo inglês contemporâneo responde essas perguntas.
Ser Narrativa
Este senhor de noventa e quatro anos se chama Alisdair MacIntyre. Ele formou-se em filosofia na Universidade de Oxford e ensinou filosofia política, moral e ética pelas mais prestigiadas universidades do mundo. Na minha opinião, ele tem um dos pensamentos mais originais e belos da história da filosofia, também um que responde às perguntas feitas antes. Qual a importância de conhecer o passado, os “fantasmas”? Eles nos influenciam hoje?
Alisdair crê que sim, e que a resposta veio de Aristóteles. Como expliquei neste texto, a ética aristotélica baseia-se no télos, o propósito, objetivo de algo. O pensamento teleológico é o que busca orientar-se pela finalidade das coisas, aonde elas “querem” chegar, assim chegando na resposta a “o que é certo fazer nesta situação?”. Porém, a contribuição linda de Alisdair vem quando ele para de ver o ser humano como um indivíduo ponderando no vácuo e passa a nos entender como seres narrativos.
E faz muito sentido quando enxergamos dessa forma! Seres humanos amam contar e ouvir histórias. Vivemos nossa vida como uma narrativa, um livro, um filme. Para responder à pergunta “o que devo fazer?” você deve antes responder “de que história ou histórias eu faço parte?”. E quando você responde essa pergunta, também chega no cerne da questão: você descobre o télos da sua vida.
Tente pensar pelos termos de uma narrativa. Poderia um jovem alemão, ao lembrar da história da qual faz parte, acreditar que o fato de ter nascido após 1945 não tem relevância moral para o seu relacionamento com seus contemporâneos judeus? Jamais. Fazer isso é presumir erroneamente que o “eu” pode ser dissociado de seus papéis sociais e históricos. Para citar o próprio:
O contraste com a visão narrativa do “eu” é claro. Pois minha história de vida estará sempre entretecida na história das comunidades das quais advém minha identidade. Nasci com um passado; tentar romper com esse passado, de forma individualista, é deturpar meus relacionamentos atuais.
(Alisdair em Depois da Virtude, 1981)
É disso que se trata a perspectiva narrativa do homem: descobrir o télos da sua vida e as responsabilidades que ela traz. Viver a vida é representar um papel dentro de uma jornada; e as decisões dentro dela dependem da sua interpretação da sua história. Ou seja, você é livre para escolher o que quiser, mas essa escolha não deve ser um ato de vontade, e sim de necessidade para a sua história.
Todo personagem tem desejos. Mas nem sempre o que ele quer está alinhado com o que ele precisa.
(Robert McKee em Story, 2006)
Por isso que estranhamos quando alguém que foi beneficiado por uma política pública advoga por seu fim, ou quando alguém fica famoso e se afasta de suas origens, negando sua comunidade. Vai de encontro com as obrigações de seu passado, e com o télos de sua história.
Eu acho essa perspectiva tão bonita porque ela une a gente com nossas histórias, reconhece o elo indissociável entre quem faz a história e ela mesma. Ela também nos mostra como lidar com nossos fantasmas, e a importância de reconhecê-los.
Pessoalmente, fiquei pensando como não tenho essa conexão forte com a cultura brasileira, de sair e vive-la, interagir e criar com outras pessoas. Sempre vivi meus atos culturais de forma muito individual e reservada.
Seria esse um fruto da globalização? Uma quebra da tradição? O que aconteceria se alguém fosse usar meu blog para entender o Brasil da década de 2020? Ele encontraria textos sobre um esporte que um canadense criou nos Estados Unidos e outro surgido na Índia que foi apropriado com uma temática medieval europeia. Se lesse meu último texto, veria uma cinebiografia de um americano bombardeando japoneses dirigida por um inglês; se lesse meu primeiro, veria um jogo dirigido por um japonês com uma trilha sonora islandesa lindíssima falando sobre o Sonho Americano.
Agora, depois de um dia escrevendo, chego à conclusão de que talvez o mais importante seja que esse alguém me lerá. Você pode estar achando esse texto muito mais pessoal que o de costume, mas não é mais pessoal que qualquer outro. Parafraseando Kleber, os textos mais íntimos são os de ficção.
Por último, deixo mais um pedaço da sabedoria poética de MacIntyre:
Todos abordamos nossas circunstâncias como portadores de uma determinada identidade social. Sou filho ou filha de alguém, primo ou tio de alguém; sou cidadão dessa ou daquela cidade, membro de uma agremiação ou parte de uma categoria profissional; pertenço a esse clã, àquela tribo, a determinada nação. Portanto, o que for bom para mim deve ser bom para alguém que pertence a essas classes. Como tal, herdei de minha família, minha cidade, minha tribo, minha nação uma série de deveres, tradições, expectativas e obrigações legítimas. Essas condições constituem o que me foi dado na vida, meu ponto de partida moral. Isso é, em parte, o que confere à minha vida sua especificidade moral.