Olá! Faz tempo que não escrevo nada aqui, hein? Estava no meio das provas de residência, por isso acabei escolhendo deixar a escrita de lado temporariamente.
Eu estou ansioso para voltar a movimentar o blog então aproveitei que Ja Morant estará retornando de sua suspensão da NBA esta semana para publicar esse texto que escrevi alguns meses atrás, quando primeiro começaram as suas polêmicas.
Apesar de levar o nome da Tribuna do Basquete, página que encomendou alguns textos meus, este foi um que terminou não vendo a luz do dia por diversos motivos (processo comum na escrita). No entanto, eu gostei muito dele e resolvi publicá-lo mesmo que somente por aqui, com algumas alterações e atualizações.
Enfim, mantive o nome da Tribuna no título somente por uma questão de organização das tags no blog; este é o único texto meu sobre basquete que não está publicado lá, por isso que não há nenhum linque nessa introdução. Espero que gostem!
“Sou o Jesus Negro” respondeu Ja Morant, logo após dar uma gorjeta de quinhentos dólares a uma garçonete em Dallas, em julho de 2022. Ela havia perguntado seu nome devido ao valor exorbitante e teve uma reação muito emocionada quando o reconheceu.
No geral foi um momento bacana, mas essa resposta que ele deu de primeira me deixou intrigado. Deixando de lado as implicações religiosas e raciais, me questionei ali se Ja estava trilhando o caminho certo quando se trata de mentalidade, crenças e caráter, ou se estava caindo nas armadilhas do sistema no qual está inserido, deixando a humildade de lado.
Oito meses depois, em março de 2023, ele é afastado do time e sofre uma suspensão pela NBA devido a aparecer armado em uma transmissão ao vivo, além de supostamente ameaçar um adolescente com uma arma de fogo após um jogo. Dois meses depois disso, em maio, voltou a mostrar uma arma nas redes sociais e sofreu uma punição ainda mais severa.
Escrevi um texto sobre mérito que tangenciou este assunto, mas nesse aqui vamos aprofundar mais em como a arrogância é algo ruim no basquete e como a meritocracia incentiva ela a surgir.
Admirável Mundo Novo
Meritocracia é a noção de que as pessoas devem ser recompensadas de acordo com seus talentos, habilidades e conquistas em oposição à classe social de seus pais. Responda rápido: vivemos em uma meritocracia?
O debate público dentro do tema gira em torno desta pergunta. Já estamos em uma sociedade meritocrática? Ou ela é influenciada por fatores externos ao mérito como riqueza, etnia e gênero? Deveríamos compensar essas diferenças? O que seria mais justo?
Todos os espectros políticos trazem diferentes respostas para essas questões; mas não se opõem a ela. Isto é, todos que se envolvem na conversa partem do pressuposto de que esse sistema é desejável. E é difícil argumentar contra, afinal, o que tem de tão errado em uma sociedade baseada em olhar somente para os talentos da pessoa, não importando quem ela seja? Parece muito justo!
O problema que pouca gente considera é o comportamento gerado por um sistema que separa as pessoas em vencedores e perdedores. Imagine-se vivendo em uma sociedade estamental, no feudalismo. Casos de mobilidade social são raríssimos, todos estão condenados a passar a vida na classe em que nasceram. Se você fosse um camponês, você se sentiria menos capaz, habilidoso, talentoso ou inteligente que o rei?
A resposta é não. Você pode ter outros protestos em relação às diferenças dele com você, mas não vai acreditar que o rei é uma pessoa melhor que você em nenhum aspecto por causa de sua classe. Ele só nasceu na família certa. Se você tivesse nascido lá, também teria tanto prestígio quanto ele tem, teria tanto conhecimento, teria uma qualidade de vida tão boa, talvez até fosse um rei melhor. Mesmo que ele afirmasse para você que era superior devido ao seu status, você saberia que não era verdade. E no fundo, ele também.
Esta cena divertidíssima do excelente “Monty Python and the Holy Grail” (1975) ilustra o sentimento indiferente da população em relação a suposta superioridade que as classes sociais aparentam evidenciar.
O que nos leva ao sistema oposto. Suponhamos agora que você viva numa sociedade meritocrática, bem flexível quando falamos de mobilidade entre as classes sociais, recompensando as pessoas através de suas conquistas. Se você fosse pobre, você se sentiria menos capaz, habilidoso, talentoso ou inteligente que um rico?
De repente, fica muito mais difícil sustentar sua defesa. De repente, a sua classe social passa a refletir seu valor enquanto pessoa. E de repente, sentimentos específicos surgem quando se separa as pessoas entre os vencedores, capazes, melhores, superiores; e os perdedores, piores, insuficientes, o resto.
E não precisa refletir a realidade. A nossa sociedade hoje possui várias barreiras que impedem a mobilidade social e facilitam a vida de quem nasce com privilégios, e no entanto o discurso meritocrático é amplamente difundido e creditado por todos. Quem nunca viu uma pessoa cercada de privilégios afirmando que todas as suas conquistas foram fruto de seu próprio esforço? Ou até chegando ao ponto de inventar dificuldades que viveu para legitimar sua posição de mérito?
Essa crença na meritocracia pode ser debilitante entre os considerados “perdedores” e tóxica entre os considerados “vencedores”. Entre estes, gera arrogância, insolência, soberba; entre aqueles, pode gerar rancor, ressentimento, despretensão. Importante ressaltar que estes sentimentos agressivos entre os desfavorecidos não são fruto de inveja ou cobiça (pelo menos não na maioria dos casos), mas sim uma reação ao comportamento tóxico e humilhante dos que estão na categoria de “vencedores”.
Isso acontece porque os sentimentos vêm de conclusões derivadas das crenças meritocráticas. As pessoas são incentivadas a pensar “bom, talvez eu realmente seja tão inteligente, talentoso e grandioso como falam, pois eu sou muito bem recompensado pela sociedade de acordo com minha posição e isso reflete o meu mérito”. Ou o contrário, as pessoas acreditando serem incapazes, inúteis, desistindo de qualquer ambição devido à pouca recompensa que recebem por seus esforços.
Este é o sistema que temos no basquete atual. Pode não parecer, mas ele incentiva a arrogância e gera todo tipo de problema.
The Chosen One
O basquete é um ambiente onde habilidade significa quase tudo. Tendo pouco lugar para hereditariedade de privilégios, podemos afirmar com segurança de que a NBA funciona com uma meritocracia muito menos enviesada do que a sociedade no geral. É, portanto, um palco para as consequências do sistema meritocrático - o rancor, mas principalmente, a arrogância.
Allen Iverson protagonizou diversos momentos como este na sua carreira. Sendo considerado um talento geracional, o jogador de 1,83m foi a primeira escolha do draft de 1996 e foi cestinha por quatro temporadas, em uma época onde jogavam Shaquille O’Neal, Kobe Bryant, Paul Pierce, Tracy McGrady, entre outros (para quem está se perguntando, AI era péssimo da linha de três pontos, ele jogava dentro do garrafão).
No entanto, sempre foi uma pessoa difícil de ser treinada. Entrava em conflitos constantes com seus vários técnicos na carreira e dava discursos memoráveis para a imprensa os criticando por exigirem disciplina. Em um desses casos, em 2004, o técnico Chris Ford já estava desgastado com a relação e o colocou para sair do banco no próximo jogo ao invés de titular, como forma de punição. AI decidiu então que não jogaria, permanecendo com suas roupas normais.
Depois, deu essa declaração para a imprensa:
“Eu não conheço nenhuma estrela de franquia saindo do banco. Eu não conheço nenhum jogador olímpico saindo do banco. Eu não conheço nenhum All-Star saindo do banco. Eu não conheço nenhum MVP saindo do banco. Eu não conheço nenhum tricampeão de pontos (cestinha) da liga saindo do banco. Eu não conheço nenhum jogador do 1st Team All-NBA saindo do banco. Por que Allen Iverson?
Óbvio que essa situação era um pouco nebulosa e não denota especificamente arrogância por outros fatores envolvidos, entretanto, quando estava já nos últimos anos de sua carreira e não produzia mais como antes, Iverson continuou se recusando a sair do banco. Foi trocado para vários times (Nuggets, Pistons e Grizzlies) e o que antes eram atritos sobre seu comportamento fora da quadra acabaram também girando ao redor de decisões técnicas de basquete. Mesmo sem condições físicas para tal, ele exigia titularidade com a mentalidade mostrada acima.
AI foi dispensado do seu time em 2010 e jogou na Turquia na temporada seguinte pela falta de interesse dos times em contratá-lo. Se aposentou oficialmente em 2013, mas já não jogava há dois anos.
Em um exemplo mais recente, Kyrie Irving vive tendo conflitos por todos os times que passa, isso apesar de ser um talento único na liga e ainda estar no auge de sua carreira, produzindo muito mais do que a média dos jogadores. Kyrie também foi a primeira escolha do draft, em 2011, e é consenso que de fato foi uma boa escolha; ele agora está no seu quarto time na liga, tendo saído em termos não ideais dos outros três.
Na última troca, Kyrie buscou a isenção de responsabilidade por seus atos ao solicitar um contrato máximo para o time. Quem acompanhou toda a saga está por dentro das polêmicas que viveu no Brooklyn Nets desde a sua chegada, com os desaparecimentos sem explicações, sendo localizado em festas por transmissões ao vivo no Instagram de outras pessoas; recusando-se a se vacinar para covid-19, o que impedia que ele entrasse em quadra; promovendo teorias da conspiração e até materiais antissemitas, entre outras menores.
No momento que a gestão negou a ele o compromisso de renovação por mais quatro anos ganhando uma fatia boa do salário do time em busca um contrato mais flexível, Kyrie exigiu a troca. Isto é, devido a ter os talentos que tem e as recompensas que teve até ali, ele acredita que seus atos não deveriam ter consequências negativas, mesmo quando prejudicavam outros por várias vezes. Ele sentia que merecia um contrato, que ele conquistou esse direito através da qualidade de seu basquete.
Ao ser trocado para o Dallas Mavericks, ele respondeu a uma pergunta sobre a troca dizendo “escolhi [exigir a troca] porque quero estar em um lugar que sou celebrado, não tolerado”.
É difícil dizer se Ja Morant está seguindo o mesmo caminho. Após a polêmica estourar, ele assumiu a responsabilidade, mostrou-se arrependido, tirou um tempo para recuperar o foco e retirar as distrações do time e aceitou as consequências que o time e a liga impuseram. Com isso, o público conseguiu perdoá-lo muito facilmente. Uma atitude madura e virtuosa. Porém, reincidiu no comportamento inadequado pouco tempo depois, recebendo agora um castigo mais duro.
Será que ele finalmente entendeu o problema? Saberemos quando ele retornar esta semana, possivelmente amanhã. Vamos torcer para que este episódio fique no passado e que ele não caia mais nas armadilhas trazidas por seu talento no futuro. Por fim, talvez valha a pena rever a forma como vemos sucesso, mérito e as expectativas que colocamos nas pessoas.