Este mês fui a Porto de Pedras passar um fim de semana lá, respirando um pouco após o primeiro mês da residência médica. Felizmente, Deus colaborou e deixou o tempo bem aberto para eu e Sylvia curtirmos muito na praia.
Ao voltar para Maceió, fui recebido com muita chuva e já sentia saudades daquela mini baía ensolarada quando vi um aviso do cinema Arte Pajuçara: naquele dia haveria a pré-estreia do filme Sem Coração, dirigido pelo pernambucano Tião e a alagoana Nara Normande (sim, ela é minha prima, assim como Maya de Vicq, atriz que viveu Tamara), com a presença do elenco e parte da produção para um posterior debate com a plateia.
Imediatamente cancelei meus compromissos para poder comparecer, afinal era um filme que eu aguardava há meses, acompanhando a repercussão no festival de Veneza e posteriormente nos festivais brasileiros. No entanto, eu estava um pouco apreensivo.
Comentei durante o debate que via o Brasil como um país muito diverso em relação ao cinema. Das produções nacionais que assisti, vejo uma diversidade grande de gêneros e de origens; são filmes de todas as regiões do Brasil com linguagens, enredos e temas completamente diferentes entre si. É uma coisa que acho muito bonita e um diferencial do Brasil em relação a outros países.
E claro, eu sentia muita falta do cinema alagoano nesse meio, de ver filmes nossos contando as nossas histórias, mostrando nossos talentos. Então vem esse filme, com elogios por onde passa, com membros da minha família envolvidos e eu como expectador. Daí tanto receio ao entrar na sessão: será que vai ser bom? Será que eu vou gostar? E se for ruim?
Esse texto contém spoilers.
Esse receio desapareceu nos primeiros cinco minutos de filme. Ao ver o plano no qual as crianças estão se movendo entre os galhos e raízes do mangue, me senti aliviado porque a sensibilidade dos diretos era óbvia. A imagem era opressiva, como se fosse uma prisão ou um labirinto que tivessem de percorrer, o que ressalta o tema do filme, a complexidade dos sentimentos novos e divergentes que eles, no despertar da adolescência, estão começando a lidar.
Concomitantemente, inicia-se a metáfora mais utilizada no filme: a de que eles fazem parte da fauna local, são como animais praianos típicos, susceptíveis a intervenções humanas como pesca e tráfico. Na cena seguinte, logo após o título, eles aparecem sendo filmados por trás da rede, dentro dos pontos de pesca na maré seca, exatamente como peixes e outros animais marinhos estariam. Isto é o filme nos ensinando a assisti-lo, mostrando qual a lógica interna que move aquele mundo e com qual linguagem ele se comunica, marca de um diretor talentoso.
Outra é dar várias utilidades para uma mesma cena. Nesta, ao mesmo tempo em que está sendo introduzida a discussão simbólica, também estamos conhecendo o cotidiano das crianças de uma maneira crua e honesta - crescer nas praias de Alagoas é ter uma infância exatamente como aquela, e isso aumenta a imersão, a verossimilhança e ajuda a nos afeiçoarmos aos personagens
Com isso em mente, a pergunta mais comum que percebi entre o público pode ser respondida: afinal, qual o significado da baleia?
Ela, na verdade, representa Sem Coração. Tamara sonha com a baleia a entregando o fogo e Sem Coração sonha com a baleia sendo dilacerada, transformada em objeto e comercializada na piscina, ambas situações que acontecem de fato no filme. Ao encalhar, a baleia junta a atenção de várias pessoas curiosas, assim como ocorre com Sem Coração quando ela passa de bicicleta na praia.
Tamara também é representada como um animal marinho, mas ela vem de outro aspecto interessantíssimo relacionado a Sem Coração: esta, ao mesmo tempo que é a pesca, é também pescadora. Vemos isso no seu ofício literal, mas também na cena noturna, quando Sem Coração atrai Tamara com a lanterna em seu rosto, exatamente como estavam fazendo com os peixes.
A baleia também traz à tona referências ao livro de Jonas, no qual o personagem título é ordenado por Deus à pregar Sua palavra na cidade de Nínive. Jonas decide fugir dessa tarefa, pegando um barco para Társis. No caminho, uma tempestade horrível atinge a tripulação, que ao descobrir que Jonas recebeu uma missão divina e a rejeitou, jogou Jonas ao mar como sacrifício para apaziguar o castigo de Deus.
Jonas rezou por misericórdia e foi então engolido por uma baleia, que o guardou por três dias e o vomitou na praia para que cumprisse sua missão. Lá ele decidiu obedecer ao chamado e converteu a cidade inteira. Deus então poupou Nínive da destruição, mostrando com essa história que nunca é tarde demais para nos arrependermos e que sua misericórdia é infinita. O fato da baleia aparecer morta e de Sem Coração entrar em seu ventre falecido sugere que não há uma promessa divina para elas, não há uma Nínive para ser convertida; elas são donas do próprio destino.
Fiquei particularmente maravilhado com a casa de Sem Coração, toda em tons de azul céu com a imagem de Jesus Cristo luminoso no centro, com vestes também azuis e apontando para seu coração imaculado vermelho no centro, sendo filmada com Sem Coração vestida de vermelho logo abaixo dela. Os contrastes temáticos são evidentes e belíssimos, principalmente quando lembramos que Jesus avisou a seus discípulos que os transformaria em pescadores de homens. Ao lado de seu retrato, no fundo, está guardada a rede de pesca.
Suspeito que boa parte dessas locações eram casas reais das pessoas, mas ainda assim requer sensibilidade para saber como utilizar aqueles lugares para engrandecer a mensagem e os personagens. Isso também ocorreu com o elenco, quase todo alagoano, boa parte tendo este como o primeiro trabalho no cinema e sem pretensões de continuar neste ramo no futuro. Essa escolha foi sábia, porque gerou performances naturalistas e detalhistas; várias vezes no filme pensei “nossa, conheço uma pessoa que fala e age exatamente dessa forma”. E foram frutos de orientações intencionais porque, quando o elenco foi ao palco, haviam pessoas que estavam irreconhecíveis em seus papéis.
Esse mérito é também do roteiro, que dava diálogos carregados de subtexto para serem trabalhados. Gostei muito de quando Tamara conversa com sua mãe sobre ter medo de algo que quer fazer e, na interpretação desta, ela está se referindo à mudança para Brasília e oferece conforto e incentivo. Também gostei dos vários momentos de humor, espontâneos e simples, consequências de uma boa escrita e de atores de qualidade bem dirigidos.
Por fim, não poderia deixar de comentar sobre o aspecto que mais me chamou a atenção: o som! Que trabalho deslumbrante, particularmente perceptível para mim porque, como já mencionei, nos últimos três dias eu estava em Porto de Pedras, onde esse filme foi gravado. Lá, o som das ondas do mar é onipresente, tendo até Sylvia se assustado achando que alguém estava dentro da casa à noite. Não importa o barulho ou música ao redor, o mar está presente ao fundo.
No início do filme, não há esse som. E foi uma ausência que senti muito, com o mar em maré baixa e o som ambiente muito presente no vento, na água e nas plantas, mostrando que foi uma escolha intencional. E ao longo do filme, entendi o porquê: se as crianças são representadas com animais marinhos, nada como o mar ser a sua casa, significar aconchego, alívio, naturalidade, lar. É por isso que, quando este som das ondas surge, ultrapassando até mesmo o forró alto, ele se torna tão mais impactante.
Ao final do evento, falei a Tião que o trailer da Vitrine Petrobras trazia grandes nomes do cinema brasileiro contemporâneo como Daniel Bandeira, Anna Muylaert, Kleber Mendonça Filho, e no meio apareciam o nome dele e da Nara. Um dia, espero que os nomes deles sejam tão reconhecidos quanto os outros, porque eles merecem tão quanto. O filme é bom!