Há um ano eu escrevia sobre a série “The Last Of Us”, baseada no jogo homônimo, após assistir seu primeiro episódio. No texto, eu explicava o que achei de problemático nele e como seus defeitos eram representativos da indústria do cinema como um todo ao adaptar jogos.
Um amigo meu, ao ler minha Retrospectiva 2023, se surpreendeu com a minha escolha para série (compreensível, parece aleatória mesmo) e lamentou que eu não tivesse gostado de The Last Of Us, que foi a série do ano para ele. E só então eu me lembrei que eu não falei mais sobre ela no blog, mesmo tendo mudado minha opinião radicalmente. Eu não só gostei muito dela, como também achei ela melhor que o jogo.
Ele se surpreendeu de novo e ficou muito interessado nas minhas razões, e achei que seria divertido abordar novamente esse tema, agora tendo assistido a toda a primeira temporada. Começando pelo óbvio:
Imagine que você tenha escrito um livro. Um livro que vendeu bastante, recebeu elogios e também críticas. Algumas injustas, outras muito construtivas que fizeram você perceber alguns erros detalhistas ou oportunidades perdidas de realçar certa característica ou evento. Se alguém te oferecesse a chance de recontar essa história em outra mídia, o que você faria?
Essa foi a chance dada a Neil Druckmann, diretor dos jogos da franquia e também criador, produtor e roteirista da série. Ele, de uma maneira bem sensível e talentosa, filtrou os erros do passado e fez várias mudanças na sua obra, algumas pequenas, outras radicais.
No meu outro texto, escrevi sobre como, com exceção da cena inicial (falarei dela adiante), o primeiro episódio não mudou muita coisa em relação ao jogo, o que diminuiu a minha experiência já que tinha vivido a mesma de uma forma mais imersiva. E sim, realmente ele é um dos episódios mais fiéis, mas a questão é que há inúmeras melhorias que passaram totalmente despercebidas por mim.
E isso aconteceu porque elas foram tão naturais, fizeram tanto sentido que minha mente simplesmente supôs que sempre foi daquela forma. Porém, tendo um segundo contato com o jogo, percebi a diferença brutal de narrativa que elas colocam em diversas formas diferentes. Vou dar exemplos de mudanças simples que acrescentam verossimilhança ao mundo:
Tommy é um veterano de guerra, o que é muito mais coerente em relação à sua reputação e habilidades neste universo;
Joey vai para oeste em busca de Tommy. No jogo, Tommy não é sequer mencionado depois da elipse de 20 anos até Joey encontrá-lo em Jackson. Isso faz com que as motivações de Joey para levar Ellie na série se tornem muito mais naturais, mesmo com sua repulsa emocional ele concorda em levá-la porque deseja ir para aquela direção de qualquer forma;
Joey e Tess pedem ajuda a um traficante de baterias de carro ao invés de armas, porque não é necessário introduzir um sistema de crafting de armas e uma bateria de carro parece algo muito mais valioso, considerando que já haviam se passado 20 anos do surto. Baterias duram pouco se não utilizadas e eles precisavam de um carro para viajar;
Isso sem falar em coisas pequenas que recompensam o olhar atento, como o fungo se espalhando através das flores para os vizinhos. Houveram também melhorias narrativas e emocionais tanto ao enredo quanto aos personagens, como exemplo:
Joey tem um ataque de pânico e assassina brutalmente os soldados que ameaçam Ellie, o que é uma clara melhoria em relação ao desenvolvimento do personagem dele, levando em conta seus traumas e as consequências. Apesar de mencionar esses momentos no meu outro texto, não havia entendido de primeira que a exposição de sua frieza emocional natural (durante a fuga no carro, ao rejeitar a família pedindo ajuda na estrada) e da adquirida (quando é completamente apático ao corpo de uma menina morta enquanto empilha corpos para queimar) é recompensada de maneira grandiosa nesta cena, sugerindo que ele ainda consegue sentir, isso ainda o afeta, ainda há esperança para ele.
A adição de hifas nas bocas dos infectados foi outra coisa que mencionei de forma neutra há um ano, dizendo que ia depender de como utilizassem para ser boa ou ruim. Vendo a série, achei uma decisão acertada porque traz uma nova dimensão de repulsa e nojo explorando as aversões evolutivas naturais de nossa espécie. O body horror fica impactante agora em todos os estágios da infecção, que antes se resumia dos estaladores em diante. Dar aos infectados uma mentalidade de colmeia é outro fator que acentua a tensão e o perigo, luxo televisivo que só geraria frustração se implementado nos jogos.
Durante o restante da série há diversas mudanças nesse sentido, seja para tornar o mundo mais coerente e imersivo, seja para amplificar significados, temas, desenvolvimentos ou emoções, como nas grandes transformações que Henry e Bill sofreram em seus respectivos episódios que poderiam ser mencionadas também. Porém, eu fiz uma afirmação meio ousada no outro texto.
Lá eu disse que considero jogos a mídia superior quando se trata de imersão e por consequência profundidade, tendo vantagens que o cinema e a televisão jamais conseguiriam sonhar. Portanto, acho justo falar brevemente sobre o que essas duas mídias têm de superior aos jogos, as coisas que eles não conseguem fazer e que foram brilhantemente exploradas pelos criadores de The Last Of Us.
Retornando à cena de abertura, comentei que achei ela genial e que contextualizava a consciência dos realizadores de que falar sobre pandemia em 2023 é muito diferente que em 2013. Fiquei tão interessado e investido emocionalmente naquela cena que foi somente no episódio seguinte, mostrando a descoberta do fungo na Indonésia, que percebi a primeira vantagem absurda que a série tinha em relação aos jogos: ela pode acompanhar vários pontos de vista diferentes.
Cenas como essa são impossíveis de serem mostradas em um jogo porque você necessita estar controlando um dos personagens presentes ali, o que não faria nenhum sentido e tornaria a cena confusa e tediosa. Pior ainda seria não dar controle ao jogador e deixá-lo assistir a cena como qualquer cutscene, o que seria ainda mais cansativo.
Outra vantagem também é ressaltada nessas cenas, que é a capacidade da televisão de trocar de ponto de vista quantas vezes desejar. No segundo jogo percebemos a clara limitação dos realizadores com isso, quando ousam trocando o ponto de vista no meio da história. Infelizmente não deu muito certo, essa ideia acabou gerando um sentimento grande de fadiga no jogador quando este percebe que terá que jogar tudo de novo com um outro personagem. Já na televisão, é tão simples quanto fazer uma montagem paralela.
Um episódio excelente que explora esses dois conceitos é o terceiro, “Long, Long Time”. No início estamos acompanhando a dupla Joel e Ellie, que explora uma loja de conveniência em busca de recursos. Ellie começa a se afastar, atraída por objetos valiosos (como absorventes) até encontrar um infectado imobilizado no porão, sem conseguir se soltar. A garota fica paralisada por um momento, pensa em chamar Joel, mas decide puxar a sua faca e cortar o infectado, matando-o no processo.
A questão é que esse não foi um ato de defesa ou prevenção, ela parece estar estudando a criatura. Como ela reage à dor, o que há sob sua pele, quanto tempo demora para morrer. É um momento tenso que nos traz revelações sobre o caráter de Ellie, sua curiosidade idealmente pueril corrompida pelo apocalipse, e sua disposição a atos violentos. Um momento simples para a televisão, construído em menos de cinco minutos, mas que geraria uma senhora inconveniência caso estivéssemos presos controlando Joel.
Logo depois, o episódio muda completamente o ponto de vista e acompanhamos a história trágica de Bill e Frank, escancarando as possibilidades imensas que a televisão dá para contar tramas paralelas. A história é de uma sensibilidade tocante, que não depende de você concordar com nenhuma das decisões morais dos dois para se emocionar. Novamente, imagine tentar contá-la estando preso ao controle de Joel. Impossível.
Entretanto, a maior vantagem de todas é mais profunda. Quando um inimigo novo e poderoso é apresentado, tal como o baiacu, os personagens estão aterrorizados e fazem de tudo para evitá-lo. O jogador, no entanto, está super contente, afinal ele comprou o jogo justamente para combater infectados nojentos poderosos. Ele mal pode esperar para encontrá-lo.
Percebe que há uma clara incongruência aí? Isso se chama dissonância ludonarrativa. É quando há uma diferença de tonalidade entre como os personagens estão se sentindo (tensos, apreensivos, intimidados, apavorados) e como o jogador está se sentindo (animado, confiante, alegre, entretido). E como este controla as ações daqueles, os personagens passam a lutar, atirar e agir como se estivessem se divertindo.
Essa discordância pode facilmente quebrar a imersão e acontece com frequência não só na franquia The Last Of Us, mas na maioria dos títulos de ação e aventura. E o polimento acaba punindo os desenvolvedores; quanto mais fluido é o combate, mais viciante é a jogabilidade e mais excitados os jogadores estarão para enfrentar os inimigos.
A série, no entanto, não sofre desse problema. Isso garante que eles possam ser coerentes com o tom da história e o desenvolvimento de personagens em todos os momentos. Como exemplo, temos o primeiro encontro com os infectados no mundo apocalíptico.
Começa com uns gritos à distância e movimentos no horizonte. Há uma área sabidamente povoada de infectados e é aí que a já mencionada mentalidade de colmeia é apresentada, nos fazendo inferir o quão realmente perigoso é aquele lugar.
Os personagens tentam contornar aquele caminho, agindo de maneira adequada em relação aos seus sentimentos e ao tom da sequência, mas acabam tendo que passar por ali contra a sua vontade. Eles são extremamente cautelosos e tentam de toda forma não chamar a atenção, mas falham. Quando finalmente há um confronto, é um momento catártico; porque nós também estamos tensos assistindo. Este episódio não só traz muito mais peso ao sacrifício que ocorre nele, consequência desse confronto inevitável, mas dita como nós iremos nos sentir em encontros futuros com infectados durante a série.
Essas foram somente algumas das melhorias que percebi, mas há muitas outras menores, como por exemplo Joel pegando as metralhadoras dos soldados e corpos que encontra no caminho (ação que traz verossimilhança e não pode acontecer no jogo devido à progressão de poder das armas). O intuito não é citar todas, apenas descrever o motivo de eu ter gostado tanto dela e achado ela melhor que o jogo.
Como falei na conclusão do meu outro texto, estava de mente aberta para continuar assistindo, mas esperando que fosse apenas mais uma adaptação pobre de um jogo. Fico muito feliz quando acontece essa subversão de expectativas para o lado positivo. A série é muito boa! Barry só me impactou mais.
Também especulei sobre uma segunda temporada, quando a série iria divergir da história do jogo, mas Druckmann já confirmou que não pretende trazer novas tramas - ele permanecerá seguindo o enredo apresentado nos jogos. E quando penso nisso, sou tomado por ansiedade pensando o que irão fazer com The Last Of Us Parte II.